quarta-feira, dezembro 28, 2005

nunca conversámos

Nunca falo com ela, cruzamo-nos poucas vezes ao longo do ano. Vejo-a por cá durante as férias da funcionária que vem substituir. Nunca conversámos. Nunca.
Além de bom dia ou boa tarde só um até logo ou até amanhã.
Mas ontem, não sei se impelida pelo tão celebrado espírito de Natal, se por outra razão qualquer, talvez porque o tempo e a disposição o permitiram, virei-me para ela e perguntei.
-Então o seu Natal como foi? - Foi só uma frase, quase um cumprimento, não esperava nada mais do que a resposta habitual…
- O Natal? Passei a meia-noite a dormir na rua. Fui dar uma volta de carro, parei ali na rua atrás do tribunal e adormeci. Nunca como na noite de Natal. Nunca cozinho. Ando a passear sozinha, Não se vê vivalma. Parei ali para a polícia não me ver a dormir na rua….
Ingenuamente talvez, sempre pensei que quem estivesse sozinho ficasse em casa a consoar sem companhia, mas abrigado do frio e da solidão da cidade! Mas não.
Há quem prefira exorcizar demónios enquanto vagueia pelas ruas desertas, há quem goste de olhar para as luzes acesas das casas e fique a imaginar famílias felizes, estruturadas e politicamente correctas, de sorrisos rasgados à espera do bacalhau e das prendas embrulhadas em papel colorido e laços brilhantes.
- Nunca como. Também emagreço uns quilos – E riu alto. Depois voltei para casa, chorei até adormecer. Quando acordei já era dia, estava sol, fumei um cigarro e fui passear.
Não há mágoa na voz, não há tristeza, só há uma história de vida de pobreza, de solidão, de desamor e abandono. Não há família. Há muitos “namorados” que passam por uma vida estéril, nunca ficam, não há laços, não há calor. Há uma criança que vive com o pai. Há uma casa e um emprego que surgiu com a ajuda das instituições da cidade. Há desenvoltura e uma voz rude, há uma vida dura e áspera que sempre confundi com falta de educação…
Hoje veio aqui de propósito e conversámos.