quarta-feira, abril 19, 2006

não podia

Não podia ser outro dia. Não podia.
Levantei-me com esforço… foi uma noite mal dormida. Foi uma noite mal sonhada. Não sei. Mas é nestes dias que sou triste. Triste porque estou parada em mim, virada para dentro. Não me conhecem assim, os outros e… estranham-me. Acham-me diferente, cobram-me a alegria e o viço de todos os dias, daqueles em que vivo com o olhar longe, sempre longe de mim. Não sou diferente nestes dias, sou eu. Sempre eu.

Abri a porta. Não podia ser outro dia. Abri a porta e encontrei o teu olhar. Na tua voz descobri as palavras que me faltavam. Não podia. Hoje estou à procura de mim, da voz que consumi no sono ou na falta dele. Não me lembro o que perdi. Deixei-te entrar a cantar no silêncio da minha manhã...

Sei de cor
cada traço do teu rosto, do teu olhar
cada sombra da tua voz e cada silêncio,
cada gesto que tu faças,
meu amor sei-te de cor

Sei de cor
cada traço do teu rosto, do teu olhar
cada sombra da tua voz e cada silencio,
cada gesto que tu faças,
meu amor sei-te de cor


Momentos perfeitos. Pedi-te um dia momentos perfeitos. Não sei quantas palavras ficaram por dizer. Não sei o significado do riso cristalino das crianças, não sei. Sei que não podias ter escolhido outro dia, não podias. Não finjo que não quero mais. Não espero que o mundo não mude enquanto estou em casa a dormir.


sei cada capricho teu e o que não dizes
ou preferes calar, deixa-me adivinhar
não digas que o louco sou eu
se for tanto melhor
amor sei-te de cor
sei porque becos te escondes,
sei ao pormenor o teu melhor e o pior
sei de ti mais do que queria
numa palavra diria
sei-te de cor.
(canção de Paulo Gonzo)

sexta-feira, abril 07, 2006


escrever #1



O acto de escrever é em si um acto de solidão. A solo. Em solilóquio as ideias flúem entre o que penso e o papel, entre o que sinto e os meus dedos. Depois sem planos prévios ou sem intenções programadas nascem textos, matéria física com identidade própria que pode ser palpada por outros que já não eu. Um corpo que se estende além de mim, mas que ainda assim sou eu.
Do acto de escrever nasce a partilha. Dou-me em fragmentos desordenados, umas vezes assumidamente biográficos, noutras a fingir que brinco ao faz de conta.
Uma entrega nem sempre entendida, mas sempre comprometida com a verdade ou se calhar nem sempre… Talvez às vezes me vista de personagens que imagino como reais, talvez conte histórias que um dia pensei em pessoas que existem, talvez invente episódios reais adequados a quem não conheço…. Talvez…


Escrever #2
Escrever impõe um ritual, passos seguros de uma cerimónia interna que nasce do culto das letras. E escrevo aqui, a sós, agora, sob a luz do sol, no sítio de sempre, rodeada do que é meu.

Escrever #3
Gostar de escrever. Carregar para todo o lado o caderno de capa preta. Escrever o que sinto. Não dizer. Abrir o caderno e escrever.
Esconder na mala os lápis de todas as cores ao lado das folhas brancas. Querer escrever um livro inteiro, um livro infantil, inventar as ilustrações com cores vivas e quentes.
Escrever e contar. Juntar toda a gente e começar a história, um, dois, três, ERA UMA VEZ … uma aventura que começa quando já corre veloz a mão pela história. A crescer, a crescer, onde crescem os contos de hoje.
E no FIM a história é grande, tão grande que não cabe numa noite cheia de estrelas, que não cabe no tempo de embalar, que não cabe numa infância inteira e chega até à idade adulta. Meninos grandes tão grandes maiores que gente crescida.

quinta-feira, abril 06, 2006

o tempo não sabe nada
Jorge Palma


o tempo não sabe nada, o tempo não tem razão
o tempo nunca existiu é da nossa invenção

se abandonarmos as horas para nos sentirmos sós
meu amor o tempo somos nós

o espaço tem o volume da imaginação
além do nosso horizonte existe outra dimensão

o espaço foi construído sem princípio nem fim
meu amor tu cabes dentro de mim

o meu tesouro és tu, eternamente tu
não há passos divergentes para quem se quer encontrar

a nossa história começa na total escuridão
onde o mistério ultrapassa a nossa compreensão
a nossa história é o esforço para alcançar a luz
meu amor o impossível seduz.

quarta-feira, abril 05, 2006

fecha os olhos



Despi-me. Devagar. Assim, sem roupa, ao fim da tarde, no silêncio da casa, encontro-me. Nunca andei perdida, eu sei. Mas gosto deste ritual. De me saber nua, só, viva, o sangue a correr nas veias, a pele em contacto com a tarde. Escolho a música, abro as janelas, pego no meu livro e encolho-me no sofá macio.
Com o livro no colo adormeço. Sinto-te chegar. Desperto com vagar de sonhos turvos, enevoados de histórias.
Chamo-te. Toco-te com suavidade, sinto o teu calor através da camisa. Olho o teu pescoço desenhado, aninho-me. Abraça-me.
Fecha os olhos. Peço-te.
Fecha os olhos e ouve o silêncio.
Já não há música, só o barulho da cidade, só a tarde lá fora, só as minhas roupas caídas, só o livro esquecido, só o meu respirar quente no teu pescoço. Em ti.
Olhas-me. Na minha pele conto-te histórias. Poemas que escrevemos noutras tardes, noutros rituais. Palavras que ficaram gravadas aqui, não vês?
Fecha bem os olhos.
São palavras que me vestem por baixo da roupa. São o que eu sou, choram o que eu choro, riem quando eu rio.
Tiro-te os sapatos. Fecha os olhos. Prendo-te junto a mim no sofá macio. Fecha os olhos. Tremes.