terça-feira, outubro 25, 2005

à noite

Aprendi contigo a conhecer as cidades à noite, quando viajo. A querer conhecer os sítios que visito quando a noite chega. A partir sozinha, à chuva, ao frio, nas noites quentes, mas sempre sem pressa. Sempre devagar. Sempre sem hora de chegada. Sair só para sentir o pulsar das cidades. Conhece-las verdadeiramente. Descobrir as cidades quando o sol se põe e as luzes ganham espaço no labirinto das ruas, progressivamente abandonadas.

As cidades não dormem. Não adormecem como nós. Como tu e eu. Não respiram calmamente no escuro, já abandonadas. Não deixam a vida parada enquanto fecham os olhos. Não morrem todos os dias na almofada para voltar a renascer como se o tempo estivesse parado no momento em que o deixámos.

Aprendi contigo, a sair, a fechar a porta atrás de mim e a vaguear pela noite. Errante pelas ruas descubro outras vidas, reparo noutros pormenores, oiço outros sons, descubro outros sabores, sinto outros cheiros.

Ontem saí, fechei a porta, pensei em ti e parti. Parti pela minha cidade. Resolvi descobrir a outra vida da cidade que conheço todos os dias, quando amanhece. Depois sentei-me à tua porta e fiquei à espera que o sol nascesse.

segunda-feira, outubro 24, 2005

cheira tão bem o café...

Desculpa. Hoje não me apetece falar.
Não me apetece a tua compreensão, nem a tua calma ou serenidade. Não me apetecem os teus olhos verdes a perscrutarem-me. Apetece-me subir para a cadeira, aqui na esplanada e recitar poemas. Apetece-me olhar o sol, sentir o vento na cara e cantar. Cantar muito alto enquanto bebo um café (quentinho). Cheira tão bem o café.

Não me apetece. Estou só sentada enquanto te oiço perguntar-me o de sempre. Estou cansada que a nossa relação seja este desfiar de histórias, de mágoas, de marcas , as minhas, essas marcas que ainda não são feridas e, que se calhar um dia destes se abrem em golpes fundos, dolorosos e crus, quase em sangue.

Falas. Eu estou só à mesa do café. Falas. Eu já estou lá fora, empoleirada no parapeito, junto à praia. Finjo que sou acrobata e sonho. Sonho tão alto que percebes que não te estou a ouvir. Depois és tu a olhar para mim e eu já estou lá baixo na praia, no meio da água revolta, com a roupa molhada. Não tenho frio.

Agora olho para ti e já estou a sorrir, a saltar no meio das ondas. A praia está vazia. É Inverno. Venho a correr e dou-te um abraço apertado. Desculpa. Hoje só quero levar-te pela mão.

sábado, outubro 22, 2005

E se a minha vida fosse um filme?

Tento começar o argumento da vida que é minha, compro um PDA e arrumo-a meticulosamente. Deixo de viver, e vivo dentro do PC, com agendas ordenadas, com contactos actualizados, com listas alfabéticas de tarefas, de deveres, de prazeres programados. Não vivo, sincronizo-me com a racionalidade. O filme da minha vida é perfeito.

E se tenho que contar uma vida perfeita prefiro ir por aí e plagiar autores consagrados. Sim, autores premiados que escrevam frases irrepreensíveis, cheias de sentido e sentimento e muito, muito complicadas… Palavras que eu possa roubar como se trouxesse flores colhidas no jardim. Mas não encontro nos escritores conhecidos a vida que queria perfeita, a história que queria minha.

Prefiro escrever o meu argumento como escrevem os artistas e os poetas, escrever sem nexo, sem causa, sem cor, sem credo, despojada… Mas não, só escrevo como digo “Bom dia” quando passo pelo vizinho, só sei escrever como digo “Vou comprar o jornal”. Escrevo como estou à mesa de um café, sempre eu, sempre evidente, sempre transparente… sempre linear.

Agora, aqui sentada, a tentar escrever o argumento do meu existir, é como se estivesse a ensaiar a vida, a praticar primeiro para viver depois, amanhã ou um dia destes. Começo o filme a tentar escrever histórias pequenas, a tentar sair do mundo, devagar, devagarinho, como se fosse um balão de ar quente a subir, a subir, mas com um fio longo preso ao chão…

Escrevo lado a lado com o mundo, estamos os dois sentados à secretária. Estamos calados. De vez em quando ele chega-se a mim e espreita para o monitor. Eu finjo que não vejo e continuo.
Na minha secretária estou assim, rodeada de tudo o que é meu, dos meus livros, dos meus lápis, dos meus desenhos, dos meus pincéis, dos meus CD’s… gosto de me encontrar aqui, quase como se eu fosse também uma das minhas coisas.

Agora a história já está toda cá, debaixo dos meus dedos, sai quase em silêncio, à flor da pele….

sexta-feira, outubro 21, 2005

depois já era ontem à noite

Primeiro o dia corria mal e os problemas surgiam. Foi na reunião que tudo se esclareceu e resolveu. Assim já podia sorrir.

Depois já era ontem à noite e em vez de escrever ao mundo apeteceu-me escrever-te a ti, também não queria estar com o mundo em minha casa, queria-te a ti, também não queria ter ido tomar café com o mundo, gostava de ter ido tomar café contigo.
E assim vão as coisas, mais pequenas, mais devagar, e eu a sorrir enquanto olho para o monitor.

Depois é o meu corpo a lutar com as sensações, seja segunda ou sexta-feira. Sou eu a lutar com as coisas que tenho dentro, com as coisas que sinto, que me atravessam muito rápido, umas atrás das outras e eu a sentir, a sentir tudo, depois sou eu a lutar também com as coisas que penso, sou eu durante a noite a ter sonhos e a acordar de repente cheia de ilusões, muitas, tantas que já não cabem dentro de mim e vagueiam pelo quarto, no escuro, vejo-as voar…

Sou eu a querer dizer-te qualquer coisa, muita coisa, algo que te toque lá dentro, muito fundo, sou eu a ficar quietinha, como quem espera, uma palavra ou um sinal.
Mas espera. Como quem espera alguma coisa de ti.

quinta-feira, outubro 20, 2005

Cinco anos


Já foi há cinco anos. Faz amanhã cinco anos que partimos ou que chegámos… Chegámos aqui, tão longe, tão alto, tão fundo… como nunca imaginámos quando começámos o caminho. Há cinco anos que vivemos em lado nenhum. Um dia, por ti, por mim, por nós, saímos. Fintámos o politicamente correcto, os deveres e as obrigações da sociedade e tudo o que se esperava de nós e fomos. Fomos em busca de um viver intenso, diferente, real, mais nosso. Não deixámos a vida em suspenso, a vida veio connosco. Está aqui.
Vivemos cada dia, construímos a cada etapa esta vida que escolhemos. Cresci nestes cinco anos. Crescemos. Gostas de dizer que estamos hoje mais próximos do que alguma vez estivemos. Somos uma só identidade com opiniões, gostos, quereres e desejos às vezes diferentes, às vezes iguais, mas a nossa escolha foi um só destino.

Fomos aos locais mais estranhos, mais longínquos, fugimos do turismo, do esperado, do habitual. Vivemos a vida de quem nos acolheu, sentimos na pele as necessidades de quem nos abriu a porta, entrámos em palácios, dormimos em palhotas, vestimos bordados e veludos, dançámos com saias coloridas. Estivemos nas montanhas mais altas, nas praias mais bonitas, nas cidades mais comuns, nas florestais mais preservadas, nas aldeias mais pequenas. Vivemos entre o inverno glaciar e o verão africano. Mas vivemos. A caminho do mundo, o nosso caminho mudou também. Agora já nada será como antes e se calhar ainda bem…Hoje dá-me prazer escrever/descrevermos as nossas viagens, a duas mãos (a minha e a tua), a dois sentires e, é nessas histórias que nos revemos e que mostramos aos outros a vida que também pode ser vivida, longe do sítio onde nascemos, longe da luz que nos viu crescer, mas perto de onde estamos em casa.

Sempre quis poder escrever. (Ser escritora como é comum classificar na lista das profissões. E-s-c-r-i-t-o-r-a, uma palavra bonita, completa, mas tão importante, tão séria, tão acima do comum dos mortais que me coíbo de utilizá-la...).
Sempre quis poder escrever. Poder escrever o que sinto e o que vivo, mas só porque o tivesse vivido mesmo, mas só porque de facto houvesse essa riqueza para contar e partilhar. E para chegar/chegarmos aqui foi preciso encher-me com o mundo que me rodeia, com o mundo que os outros vivem, com o mundo que apesar de não ser meu, é o mundo real.

E já foi há cinco anos. Faz amanhã cinco anos que partimos.

quarta-feira, outubro 19, 2005

Empresta-me o teu sofá...

Telefonei-te. Inesperadamente pedi-te… “emprestas-me o teu sofá por uns dias?”. Disfarçaste a surpresa, quase a gaguejar respondeste. “Claro, quando quiseres”. Somos amigos.

Uma semana depois foste buscar-me ao aeroporto. Não me perguntaste nada. Sorriste. Somos amigos. Tu sabes. Levaste-me a mala, instalaste-me no teu sofá. Mostraste-me a casa, quase com cerimónia, explicaste-me o funcionamento da tua rotina, do teu existir diário, do teu reino. Levas uma vida sossegada, quase sozinho… eu sei. Ainda não encontraste a tua metade, eu cheguei perdida entre o que a vida me dá e o que eu sonhei para a vida. Nunca tínhamos estado sozinhos. Nunca. Talvez a novidade explicasse esta cerimónia entre nós, uma formalidade que nunca tivemos.

Depois mostraste-me Barcelona. Aos teus locais favoritos juntaste os sítios que eu passei a ter como meus, na tua Barcelona. Apaixonei-me pela cidade. Devagarinho. Mergulhei na arte, no design, na arquitectura, no movimento da cidade, na organização pouco espanhola e tão cosmopolita, quase mundial. Conheci o Pablo, a Rosa, a Cármen e o Javi. Conheci outra forma de olhar a vida. Aprendi a dançar com o swing latino. Aprendi a viver a vida ao sabor da sesta.

A sós, partilhámos conversas sem fim, discutimos a vida. Discutimos as nossas existências inteiras, até ao momento em que nos cruzámos. Rimos, rimos à mesa, enquanto lavávamos a loiça, enquanto fomos às compras, enquanto apreciávamos o pôr-do-sol numa esplanada, enquanto descobrimos a praia. As nossas conversas de outros tempos repetiram-se, agora com a presença física, agora com a proximidade do teu olhar, com a presença do teu calor, do teu cheiro, da tua calma, da tua voz doce, do teu sorrisos alegre.

Apaixonei-me por Barcelona de mão dada contigo. No teu sofá, encontrei-me outra vez. Saí perdida de casa e redescobri-me contigo, longe, tão longe de tudo e de todos.
Depois apaixonei-me por ti.

segunda-feira, outubro 17, 2005




Pediste-me um nome, um título para uma sequência de fotografias, imagens que tinhas guardadas e que hoje inesperadamente partilhaste comigo. Não sei se o desafio surgiu porque me achas criativa ou imaginativa, não sei se esta solicitação encerra um elogio, assim tão rasgado. Mas duvido. Duvido. E esta desconfiança surge porque da nossa vivência já te percebi parco nos elogios, mas muito, muito exigente contigo e com os outros, ainda assim gostei. Gostei do desafio, devolvo-te a resposta de forma inesperada. Desta vez surpreendo-te.

Numa tarde luminosa, no Verão que agora termina, entre amigos e ao sabor do agradável torpor do dolce fare niente, tu, armado em fotógrafo, capturaste a luminosidade que enchia a praia. Tomaste como refém a luz que dançava distraída nas ondas.
Ficaste ali, imóvel naquele momento, enquanto mergulhavas embalado nas águas do mar, em busca de uma serenidade revolta. Ainda hoje lá estás, estático, naquele momento, naquela tarde de Verão, naquelas férias.

Ainda hoje te visitas, quando os dias correm menos bem, quando o tempo livre deixa, quando te apetece descansar, quando assim o decides… Partes e vais até lá. Ficas ali, sentado ao pé de ti, enquanto te imortalizas nesse momento de paz. Nessa quase felicidade.

E assim, quase sem dares por isso, encontrei secretamente a forma de intitular o teu “trabalho” daquela tarde ventosa e iluminada de Verão. Partiste em busca de nada, e encontraste-te numa Impetuosa Tranquilidade, no meio de uma Imperturbável Inquietude, entre jogos de Luz e Sombra, de Paz e Revolta, quase como se a tua vida estive ali, espelhada naquele mar.

terça-feira, outubro 11, 2005

navio de espelhos


Hoje acordei e era uma ilha. Assim, desacompanhada no meio do mar.
Sou uma ilha que navega, quase um navio. Um navio de espelhos que reflecte o sol e o fundo do mar.

O navio de espelhos
não navega cavalga

Hoje acordei e era uma ilha. Uma ilha grande, colorida, muito verde. Na minha ilha o sol brilha com intensidade e o mar é muito azul. Tão azul que fere os olhos mais desprevenidos. Os olhos que chegam ensombrados pela opacidade do sobressalto do mundo.

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível
Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Sou uma ilha quente, alta, forte. Ando à procura de morada para ficar. Ando por aí, sem andar perdida, encontrei-me no navio de espelhos. Procuro o destino que sei que é meu, com a certeza que o vou perceber quando chegar.

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga
O seu porão traz nada
nada leva à partida

Inventei-me a cada dia no jogo dos reflexos das representações, reproduções e retratos. As imagens do que fui, do que já não sou, do que almejo ser e do que realmente sou confluem e confundem-se com as imagens que os outros reflectem nos meus espelhos. Sou eu porque tenho muitas identidades, porque sinto o que sentem, desejam e ambicionam várias vontades, porque tenho a vida de todas as pessoas que vivem em mim. Todas as que habitam o navio de espelhos que não navega, cavalga.

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto
A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

É nesta alternância que me completo enquanto navego. Hoje acordei e sou finalmente uma ilha, quase navio, quase parada, quase em casa. Navego com os espelhos alinhados pelo sol, confiante na rota escolhida, segura da ilha que sou à procura do fim do mundo.

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)
Do princípio do mundo
até ao fim do mundo

Poema de Mário Cesariny o resto sou eu

quinta-feira, outubro 06, 2005

a um amor maior que a morte...

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone.
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He is Dead,
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song,
I thought that love would last forever: 'I was wrong'

The stars are not wanted now, put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood.
For nothing now can ever come to any good.

terça-feira, outubro 04, 2005

Tenho pena e não respondo

Tenho pena e não respondo.
Mas não tenho culpa enfim
De que em mim não correspondo
Ao outro que amaste em mim.
Cada um é muita gente.
Para mim sou quem me penso,
Para outros - cada um sente
O que julga, e é um erro imenso.
Ah, deixem-me sossegar.
Não me sonhem nem me outrem.
Se eu não me quero encontrar,
Quererei que outros me encontrem?

Fernando Pessoa