- Quando chegar ligo-te. Prometo!
Passo pelo quarto, o João dorme. Afago-lhe os cabelos macios, respiro com ele alguns segundos, ao ritmo do seu sono descansado. Guardo também o cheiro dos seus sonhos e fecho a porta silenciosamente. No escuro brilham as estrelas que eu e ele pintámos no Verão passado, com a ajuda do Avô António.
Volto à sala, André permanece imóvel, enterrado entre as almofadas azuis, com os pés descalços, calças de pijama de algodão velho e gasto, – como ele tanto gosta – olhar triste, cabelo negro despenteado, t-shirt branca.
Respiro fundo. Oito anos depois de o conhecer, ainda sinto o coração a bater mais forte cada vez que encontro os seus olhos, cada vez que nasce em mim o desejo de me aninhar nos seus braços fortes, à espera que a sua mão grande me acaricie os cabelos encaracolados. Ainda me percorre um arrepio quando ele me canta ao ouvido, quando me leva pela mão para dançar e flutuamos pela sala.
Dou-lhe um beijo e toco-lhe na testa:
- Estás quente…. Era melhor não apanhares frio. Fica em casa estes dias….. Podias ficar, assim o João não sentia tanto a minha falta.
- Sabes que tenho reuniões importantes. Este projecto é crucial. Depois vamos de férias os três. Prometo. Onde quiseres.... até à tua querida Ilha das Cegonhas Azuis, de que tanto gostas!?
Olho-o com surpresa, mas ele continua
- Acredita. Só nós, sem telemóvel, sem internet, sem contactos.
André fala sem tirar os olhos da televisão, sem sequer reparar no meu desconforto, sem sequer reparar na sombra que por momentos me leva para longe……. Até uma praia na Ilha das Cegonhas Azuis.
Saudades!
Um sorriso, um último olhar e saio decidida rumo ao aeroporto.
Sempre gostei de partir para as minhas viagens como quem vai sem destino à procura de novas vidas. Sempre sonhei viver esta vida, aos retalhos, intensos, cosidos a linha forte, fios de um sentir só meu.
Quando chego os colegas já lá estão. Habituados como eu a viagens de longo curso, nada interfere na nossa rotina de não ficar muito tempo, de deixar a família, de viver com a mala feita, sempre prontos a partir. Ana, além de colega e cúmplice é a minha melhor amiga. A única com quem partilho pecados, fraquezas e segredos. Recebe-me com o mesmo ar de desconforto de outras partidas e chegadas, mas sem nunca me julgar. Como em tantas outras ocasiões lanço mão da mesma resposta, do mesmo olhar, da mesma força.
- Já não me conheço de outra forma. Deixa-me estar!
O voo decorre sem sobressaltos. Catorze horas pela frente.
Estou impaciente. Saboreio lentamente este regressar. Já a sentir a brisa quente da Ilha a bater-me no rosto, já a desfrutar do doce torpor do tempo que passa devagar. Ali a vida pára e cada um cria o seu ritmo. Escolhi este percurso há anos entre os voos de longo curso. Para o fim do mundo, como lhe chama o André, sem compreender este meu apego. Manter este destino tem sido uma bênção, os céus conspiram a meu favor. Tempos houve em que tive que mover influências, mas não foi difícil convencer os colegas, que preocupados com a família que cresceu ou movidos pelo desejo de uma rotina menos quebrada, rapidamente preferiram percursos mais curtos, mais rápidos, menos demorados, que impusessem menos ausências.
Apaixonei-me pela Ilha logo na primeira viagem. Depois voltei, não só pela magia do local, mas principalmente pelos cheiros, pela calma, pela hipnose que me subjuga e chama, pelo calor, pelo mar. Mais tarde pelo aroma do peixe grelhado ao alho, especialidade do Stefano, pelo silêncio da Casa Amarela rasgada sobre a Praia das Pedras Perdidas, pelos espanta-espíritos que ondulam ao sabor do vento, na janela da varanda, ainda pela luz que entra ao amanhecer no quarto azul, com as estrelas iguais às do João, pintadas no tecto, pelos pequenos almoços…… pelas leituras saborosas no alpendre sob o sol do início da tarde.
Apaixonei-me no primeiro minuto pelo olhar, pela vivacidade, pela alegria traquina, pelos cabelos de mel, pela pele morena, pelos olhos sorridentes atrás dos óculos de metal, pela teimosia de tentar fazer um jantar romântico à luz das velas, sem ajuda. Apaixonei-me todos os dias em que vivi com ele.
Saio com a bagagem da zona dos passageiros e avisto imediatamente, no meio da multidão, a figura alta de Stefano. Aperta-me. Estou em casa.
Três dias na ilha. Passam sem pesar. Leio os novos capítulos do livro que o Stefano está a escrever. Costuma dizer-me que sou a sua melhor crítica, mas o livro que tem em mãos actualmente da-lhe um prazer especial. È um desafio duplo, o desafio da sua vida.
De novo no aeroporto, já de malas na mão procuro um presente para o João, mais um golfinho para juntar às centenas de baleias, tartarugas, cachalotes, leões marinhos, peixes coloridos, polvos de todos os tamanhos, tubarões e estrelas do mar, bichos que colecciona. Também ele partilha a minha paixão pelo mar. Telefono para casa do aeroporto.
- André?
É tão bom voltar a ouvir a sua voz forte e quente que me assegura que está tudo bem, que a minha vida está à espera. A casa cheia de brinquedos do João, o abraço terno do André, o sorriso de boas vindas dos pais, até o ronronar da tareca me faz falta.
No avião, os dias que partilhei com Stefano não me saem da cabeça. Recordo a viagem de balão, a escalada nocturna à montanha, os quadros que adoro pintar e que depois povoam a nossa casa, o projecto do Hotel do Farol que está quase pronto....
Chego a Lisboa e corro para casa. Abro a porta e são os braços do André que me recebem. Saudades! Tantas saudades! Tantas.... em todos os minutos. Mal consegui esperar para pegar no meu bebé, para o encher de beijos, para o apertar contra mim. O jantar em família trouxe-me calma e harmonia. A presença do André ao meu lado, sossega-me, protege-me, o seu amor alimenta-me e dá-me forças. Agora pela frente tenho quatro dias para acompanhar o João, para apreciar a casa, para saborear os nosso serões a dois, para festejar o aniversário do Pai, para comprar um presente especial para o meu Stefano.
Mais uma vez de partida, na rua, a caminho do aeroporto dirijo-me para o carro e sorrio.
Esta é a vida que me tocou, o puzzle que criei para apagar a angústia de querer viver todas as vidas. Multipliquei-me, dividi-me, completei-me, aqui, ali, além. Perdi-me no medo do mundo não me chegar. Encontrei-me na certeza de saber que dentro de mim são muitas as pessoas, as almas, os quereres. Retalhos que colo todas as noites antes de adormecer.